EU... Eu, eu mesmo... Eu, cheia de todos os cansaços, Quantos o mundo pode dar. — Eu... Afinal tudo, porque tudo é eu, E até as estrelas, ao que parece, Me saíram da algibeira para deslumbrar crianças... Que crianças não sei... Eu... Imperfeita? Incógnita? Divina? Não sei... Eu... Tive um passado? Sem dúvida... Tenho um presente? Sem dúvida... Terei um futuro? Sem dúvida... A vida que pare de aqui a pouco... Mas eu, eu... Eu sou eu, Eu fico eu, Eu... (Fernando Pessoa)

2 de abril de 2008

Não existo, ou só existo.


Começo a correr...


O céu pelo mundo, os vagalhões dourados, o desespero do instinto feroz, as enxurradas dos sóis e das pedras, os mortos que se levantam para dançar, o descabelado, o frenético, as forças monstruosas e cegas, o sufoco do calor a pique no Verão, a nuvem em Dezembro que é sempre a mesma, a árvore, duas folhas cinzentas a cair, o som de sinos, cães vadios a enroscarem-se para dormir...
Por dentro disto corro.
Por dentro disto sonho.
Violo o espaço sonho adentro, lua de coral a trepar pelos ossos da montanha.
Neste silêncio, o sonho atira-me braços desconformes.
Pega-se-me...
Em vão luto contra o fluido que avança para mim em exaltação de frenesim e nervos.
Um cão, focinho de ternura.
Uma manhã de chuva, onde me encharquei com vontade, o momento em que demos as mãos em pequenos fios de água.
Cor, tinta, papel em saudades impossíveis.
O mistério que me desfaz num único golpe.
Pedras gastas pelos passos, e que os meus passos ajudaram a gastar.
O ruído inaudível da chuva na vidraça.
O mundo varrido a vento.
Tudo isto de vai edificando pelo lado de dentro, cresce por e para dentro, como se não coubesse no mundo, o friso incompleto de uma cidade fantástica, o alto relevo de uma figura em delírio, o mistério envolto em bruma e vapor, um cão grande a descansar, a cauda de um cometa a pintar o céu, três amigos e uma mesa de madeira, o vinho é bebido em badaladas esquecidas, a manhã pode chegar devagar...

Neste momento, ou eu não existo, ou só eu existo.


Pinto o mundo com pincéis amarelos, respiro e os muros caem.
Não assalto, invado.
Não tenho sonhos, deliro.
E quanto mais depressa corro, mais me encharco deste sentir.
A roupa pesa-me. Tiro-a.
Carrocel, tropel mágico a galope, desesperado e caótico, cataratas de estrelas, jacto de portento que caminha para o infinito, arastando alma e lógica, lógica e absurdo, absurdo e deus.
Começo a voar...
Não sei o que quero, o que quero, no que creio ou não.
Sou um fantasma com fome de corpos, uma ideia em queda livre.
O coração descompassado e arrítmico lança-me alertas.
Não o ouço.
Não o preciso.
Salto por cima das covas, sou arrastado contra os ventos, sinto o pó a ficar para trás, de ouvido de encontro ao mundo, em imensidão sem nome.
Sou mudo e existo.

Existo sem palavras para existir.


O minuto entre nadas, a correr nas pontas dos pés.
Roleta russa entre o que há e o que sou, quer existamos, quer não.
Sempre por dentro, sempre para dentro.
Sou um cão esfaimado a roer côdeas.
Uma aranha à espreita, com o estômago vazio, um salto brusco no vácuo, tábua rasa com veneno na algibeira.
O meu salto a tocar no mundo, como quem corta nervos, e o mundo sente-me como quem não consegue parir.
Chovem pianos, as palavras já não servem aos músculos, dão de caras com a luz, a guilhotina em movimento descendente, a forca muito bem esticada, a gota de veneno no vómito que não cai, o sonho possível na tragédia, o desejo encarniçado de impossíveis, vôo de rastos com restos de pó, em descarne de medula, a exigência de um eterno.
Cada coisa é infinita, cada vida é infinita, tudo é caos e espanto, o ar carregado de frio e humidades, as bolhas pesadas de água e pó.
O corpo pede-me calma...
Não o ouço.
Não o tenho...
A ternura é húmida e o mundo é voragem.
O sonho arranca-me as peles. Eu sei que são as melhores coisas da vida que nos arrancam as melhores lágrimas, mas eu luto com a morte até ao último despedaço, escarneço, sou fluidos, estou nas minhas mãos.
Branco

Doirado
Fundo
Flores comidas em silêncio, numa janela muito alta.
As órbitras explodem aos encontrões pela noite, escorrem sonhos a galope, os braços são lanças flamejantes apontadas ao proibido.
Roubo os xailes às velhas e danço com elas, forro-lhes a vida a poentes vermelhos, o sorriso que cresce como convulsões na garganta.
O meu grito, testamento de deus, sei lá se existe ou não, eu atiro os olhos aos telhados, as gavetas são arrombadas, o dia que cheira tão bem, uma bailarina rodopia sozinha no centro de um coliseu.

Eis-me.


Estendo as mãos para me apresentar, descoberto, dorido, frustre, imenso.
Cresço, grito, corro, avanço, vôo, balanço no vento com aquela réstia de luar, pendurado numa corda.
Verde, roxo, violáceo, lilásico, obsceno, reles, admirável, arfante, a embalar ventos e berços. Choro como quem chove, grávido do mundo.
Sinto as pernas como labaredas, o coração é um comboio, resquício flamejante de escarlate.Não páro.
Não páro...
Eu sou a queda e aquilo que cai, o embrião que reclama a sua entrada na vida...

Perco-me enfim,e finalmente,caio ao chão.
Ouço o tempo estilhaçado a latejar nos ouvidos.
As pernas a tremer, o coração no limite do bater.
As nódoas de sangue nos cotovelos.
O peso da Via Láctea na base da cabeça.
O céu profundo,
o céu profundo,
de lés a lés,
de lés
a
lés,
conheço-o agora.
O meu nome.
É homem...



By Pedro

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"Cada um sabe a dor e a delícia de ser o que é..." Catetano Veloso

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