EU... Eu, eu mesmo... Eu, cheia de todos os cansaços, Quantos o mundo pode dar. — Eu... Afinal tudo, porque tudo é eu, E até as estrelas, ao que parece, Me saíram da algibeira para deslumbrar crianças... Que crianças não sei... Eu... Imperfeita? Incógnita? Divina? Não sei... Eu... Tive um passado? Sem dúvida... Tenho um presente? Sem dúvida... Terei um futuro? Sem dúvida... A vida que pare de aqui a pouco... Mas eu, eu... Eu sou eu, Eu fico eu, Eu... (Fernando Pessoa)

26 de agosto de 2008

A confusão dos titulos BDSM...

Vivemos tendo problemas com nomenclaturas. Não sei se isso incomoda vocês e, de fato, não chega a me incomodar muito. Mas lá no final eu me justifico plenamente, vocês vão ver só.

Quantas vezes não estamos conversando na internet e aparece um "Mestre" com a gigantesca experiência de...hummm...1 ano!

Eu, por exemplo, não sou Mestre. Que arrogância seria dizer isso.Na média esse tipo de título é dado pela comunidade a alguém, não costuma haver um “auto-intitulado” Mestre. Alguém pode usar a palavra Mestre em sua alcunha, em sua apresentação e não acho isso errado. Não estou, de forma alguma, condenando quem se apresenta dessa forma. Estou condenando quem vive de aparência falsa e afirma ensinar o que nunca aprendeu.

Por favor, queridos, não tomem esse texto como uma agressão. Pretendo discutir os papéis sociais dentro da comunidade BDSM. E, claro, muitos Mestres são realmente Mestres, afinal de contas.

É normal que alguém use um título como apelido. É uma escolha pessoal, não condeno. Fulano pode gostar de ser chamado “Mestre”, isso pode excitar aquele Dominador de alguma forma. Isso não chega a ser um crime contra o BDSM. A questão não é julgar esse ou aquele Dom específico, mas discutir nossos símbolos comuns. As nomenclaturas, em alguma medida, são elementos que nos permitem identificar práticas, condutas e obrigações entre nos. Elas dão liga em nossa pequena “sociedade”.

Se não importasse absolutamente nada como alguém se apresenta entre nós você não pularia da cadeira ao ver uma mulher que não conhece Shibari se dizendo dorei por aí. Não seria esquisito? Imagine uma pupila sem Mentor. Agora pense novamente no “Mestre” que não saiba manusear um chicote. Esse tipo de distorção só confunde quem está chegando e quer aprender. Um certo nível de ordem é realmente necessária nessa bagunça toda. Ou podemos desistir de organizar qualquer comunidade. Vamos teorizar o assunto.

Toda comunidade, pequena, média ou grande; simples ou complexa; do passado ou do presente possui papéis sociais. Identificamos o outro a partir de seu papel social. Isso é muitíssimo importante para qualquer senso de comunidade. Porquê o policial tem um uniforme que facilmente conseguimos identificar? Repare que eles possuem uma série de expressões, trejeitos, maneiras de ser e de agir que os definem para eles próprios e para o resto de nós como policiais. Você vê um policial e sabe que ele é policial.

Seria esquisito ir a um julgamento e ver o Juiz vestido como gari, ou o gari vestido de mestre cuca e o mestre cuca apitando o trânsito. Existem códigos e papéis sociais que nos referenciam socialmente sobre o que são as coisas e seu lugar. Enquanto micro sociedade, no BDSM também é assim.

Se você duvida, imagine chegar em um consultório médico e ao invés de um homem de jaleco branco e um ambiente de luzes frias, alvo, e aquela impressão asséptica você simplesmente trocasse tudo e se deparasse com aquilo que socialmente você identifica como um mecânico ou um açougueiro. Você sairia correndo. A menos que você tenha um tara muito forte por situações de risco eminente. Mas aí você não estaria ali exatamente pela consulta ;)

O ponto é: nomenclaturas e identidades sociais não são camisas de força, mas são importantes. Quem odeia liturgia também usa nomenclatura, mesmo esperneando. Você pode ser mais restritivo ou mais aberto em relação ao uso de códigos sociais que te identifiquem como dominador, sub ou switcher, mas você usa. Uma má notícia pra quem prega o caos: você, de alguma forma usa códigos de identificação do seu poder ou da maneira como abre mão dele.

Outro dia conversei com uma pessoa que refutava essa tese. Ela me disse que não utilizava código algum que marcasse o papel social dela na cena. Me disse que era livre de qualquer identidade coletiva com o BDSM. Eu perguntei se ela tinha coleira e ela disse que sim!

A coleira é o símbolo de algo entre nós. Tenho certeza de que se eu continuasse perguntando encontraria muitos e muitos elementos de nossa identidade introjetados na vivência daquela submissa. Assim como ninguém escapa de um papel social na vida (você é filho de fulano, com a profissão tal, que freqüenta tais e quais lugares), você também não conseguirá praticar BDSM ignorando que vai eleger elementos de identidade BDSM para si próprio, obviamente. Se isso incomoda tanto assim possivelmente é porque você talvez não tenha compreendido a riqueza desse processo na sua vida. Se esse for o caso, não tenha medo de repensar. Quem sabe você não descobre um monte de novas experiências te aguardando se você “vestir a carapuça”.

Muitas coisas eu não sei. Em outras tantas estou errado. A parte boa é manter-se aberto a novas possibilidades e se reinventar conforme você vai construindo seu conhecimento pessoal sobre as coisas do mundo. Não é vergonha alguma mudar de opinião!

Minha submissa costuma dizer que hipocrisia não é mudar de idéia, mas permanecer defendendo as idéias antigas só pra não se admitir mudado. Tenho certeza de que vou ler com entusiasmo um texto seu combatendo as idéias que defendo aqui e que vou admitir qualquer erro que eu perceba quando fizer minha autocrítica.

Avançando, compreender que existem papéis sociais na comunidade BDSM é basilar pra que nos possamos nos identificar melhor.

Mestre é mestre e dom é dom. Mentor não é Mestre nem Dom. Guardião, Protetor, qual é o título certo pro papel certo? A sub, a escrava, a cadela, a serva, kajira, dorei, quanta coisa diferente, não é mesmo?

Quanta confusão!

Não existem aritméticos mecanismos de averiguação de nossa técnica ou vivência. Não é nada como um certificado, a conclusão de um curso ou tempo de serviço. Não existe carimbo de mistress ou certificado de aptidão para escravo. E nem deve existir mesmo.
Mas existem mecanismos de identificação entre nós. Percebemos, através das expressões, dos relatos, da boa fama no nosso meio, da maturidade das colocações e por um sem número de outras coisas, pequenas e grandes, quem é e quem não é um de nós. Nós, mesmo sujeitos a erros, sabemos nos reconhecer em alguma medida ainda embrionária.

O objetivo desse texto é estabelecer que existem esses códigos e papéis. Não defendo certificado e camisa de força pra nossa sexualidade, que fique claro. Não sou um fundamentalista ritualístico. No próximo texto vou desdobrar esse conceito em algo mais prático que talvez torne essa discussão mais rica. Sempre digo que aqui no Brasil temos desafios específicos, precisamos formular um BDSM adaptado pra nossa realidade cultural. Não adianta simplesmente importar as idéias.

Por outro lado, muitos dos nossos desafios já foram vivenciados em outros países, em momentos análogos da estruturação do BDSM. Essas experiências, em que pese o parágrafo acima, não devem ser ignoradas. Como foi que outros países e comunidades enfrentaram o problema da nomenclatura confusa no BDSM? Se a premissa desse texto for aceita como verdade, nomenclatura caótica é um problema de identidade coletiva. É uma desconstrução de identidade, é afrouxar os laços que nos permitem mútuo reconhecimento. Se a premissa desse texto estiver certa, um dos elementos de superação para o BDSM brasileiro é a anarquia de “auto-intitular-se” o que der na telha. E daí vem essa sensação de confusão, de abandono e de pouca unidade entre nós.

Não há como forçar alguém a não usar o título de Mestre no orkut. Repito que esse não é o problema. Pense que alguém que usa o apelido Mestre pode estar usando de maneira legítima por duas razões: porque realmente é um Mestre ou porque a nomenclatura Mestre funciona como nome próprio naquele caso. Defendo as duas coisas como legítimas.

Repito: Não estou de forma alguma atacando quem utiliza essa ou aquela nomenclatura. O parágrafo acima deve ser relido por quem ainda estiver com essa impressão ao chegar nesse ponto do texto. É totalmente legítimo que alguém use como alcunha uma nomenclatura BDSM. Só resta explicar o que, então eu realmente estou atacando.

O que é ilegítimo é identificar-se comunitariamente como Mestre quando você não possui na sua formação os elementos que te legitimam para isso. Em um exemplo bastante precário, seria como se você exercesse medicina sem ter ido à faculdade, sem ter vivenciado e aprendido o conjunto de coisas que fazem um médico ser um médico. Não é uma questão de diploma, por isso o exemplo não é perfeito. É uma questão de não possuir o conjunto de experimentações que pudessem legitimar a afirmação de que você “é” aquilo que fica dizendo por aí que “é”.

Você pode se vestir de branco, ficar numa salinha iluminada e absolutamente limpa, cheia de apetrechos que podem até ser iguaizinhos aos de um consultório. Mas você sabe que não é capaz de manejar um bisturi. BDSM é verdade e seria muito triste perceber-se e em especial, ser percebido, como uma fraude.

Não seja uma fraude. BDSM é verdade. Isso tudo é sexualidade, não uma competição de “quem sabe mais” ou “obedece melhor”. Deixemos a competição pro Show do milhão. Não há prêmio pra mentira entre nós. O grande desserviço pra comunidade é ficar um monte de gente dizendo que e um monte de coisas e confundindo quem está numa busca sincera de sua própria identidade sexual. Precisamos tratar desse problema de maneira coletiva ou vamos ficar sempre no cada um por si e quem der azar, que fique sem referencial, ajuda ou apoio. Se cada um grita mais alto que o outro o quanto tem conhecimento, ninguém se ouve direito. Se você sabe, ensine e continue aprendendo. Se você não sabe, não tenha vergonha de aprender pra um dia poder ensinar.

O que não vale é ficar confundindo a identidade coletiva e atrapalhando a comunidade. Nós não admitimos fraudes.


Dominus Pater

Nenhum comentário:

"Cada um sabe a dor e a delícia de ser o que é..." Catetano Veloso

"Cada um sabe a dor e a delícia de ser o que é..." Catetano Veloso

Musica em minha vida para tocar a tua!

"A vida:... uma aventura obscena de tão lúcida..." Hilda Hist

"És um dos deuses mais lindos...Tempo tempo tempo tempo..." Caetano Veloso

"SOU METAL, RAIO, RELÂMPAGO E TROVÃO..." Renato Russo

"SOU METAL, RAIO, RELÂMPAGO E TROVÃO..." Renato Russo
RAINHA VICTORIA CATHARINA

"De seguir o viajante pousou no telhado, exausta, a lua." Yeda P. Bernis

"Falo a língua dos loucos, porque não conheço a mórbida coerência dos lúcidos" Fernando Veríssimo

"O que verdadeiramente somos é aquilo que o impossível cria em nós."