EU... Eu, eu mesmo... Eu, cheia de todos os cansaços, Quantos o mundo pode dar. — Eu... Afinal tudo, porque tudo é eu, E até as estrelas, ao que parece, Me saíram da algibeira para deslumbrar crianças... Que crianças não sei... Eu... Imperfeita? Incógnita? Divina? Não sei... Eu... Tive um passado? Sem dúvida... Tenho um presente? Sem dúvida... Terei um futuro? Sem dúvida... A vida que pare de aqui a pouco... Mas eu, eu... Eu sou eu, Eu fico eu, Eu... (Fernando Pessoa)

30 de outubro de 2008

Maravilhoso !!! João Ubaldo Ribeiro

computador homen cavernas


Ele Conseguiu

João Ubaldo Ribeiro

Quem me vê, aqui no Leblon, passando de bermudas com o ar meio aparvalhado de sempre, as bainhas das bermudas de sempre abaixo dos joelhos, as sandálias de sempre escorregando dos pés e o sorriso alvar de sempre com que respondo aos cumprimentos de desconhecidos, vai jurar que é o mesmo lunático inofensivo que costuma circular nas vizinhanças, indo comprar bolo de aipim na confeitaria ou ao boteco para arrostar as agressões à minha vascainidade temporariamente injuriada (apesar de já estar classificado, mas quem é vascaíno mesmo sabe a que quero referir-me) e certamente não desconfiará de nada. Passará até por perto de mim, sem ter a menor idéia de que, em meu cérebro tresvariado, reside um quase-homicida, a ponto de cometer não só um, mas vários tresloucados gestos. E, de fato, tenho saído muito mais que habitualmente para não começar a tresloucar à mínima provocação da parte dele, cuja convivência já não consigo suportar e cuja visão ameaça levar-me a crises convulsivas.

Sim, talvez algum de vocês já tenha adivinhado. É o computador, esta máquina demoníaca com a qual somos cada vez mais obrigados a conviver e que, na exatíssima descrição de um amigo meu, é dividida em duas partes principais: o hardware e o software. O software é a parte que você xinga e o hardware é a parte que você chuta. Até umas duas semanas atrás, apesar de rudes golpes e embates, eu terminava ganhando, ou pelo menos obtendo razoáveis condições de sobrevivência. Agora, porém, me vejo derrotado, arrasado, devastado e - tenho certeza - observado com desdém sádico e sarcástico por este monitor que sou obrigado a fitar de olhos injetados. Ele finalmente ganhou. Eu não deixava que ele pegasse vírus ou qualquer outra afecção, dedicava a seu caráter solerte e traiçoeiro a mais vigilante das atenções, mas desta vez ele achou um jeito de ganhar, aplicando-me um simples golpe mecânico.

Tento amenizar meu sentimento de revolta e humilhação raciocinando que ele veio para ficar e ou nos habituamos a ele ou nos fossilizamos em questão de semanas. Lembro os tempos heróicos em que, para escrever um livro, eu tinha de catamilhografar minha pobre literatura usando um abominável papel-carbono que produzia uma cópia que eu jamais emendava, mas guardava por questão de segurança, revendo resmas de laudas amarfanhadas, passando a limpo (a sujo, na realidade, porque as emendas a caneta posteriores eram inevitáveis) tudo e encaminhando o resultado a uma datilógrafa profissional, que produzisse originais apresentáveis. Depois, revia os erros que a datilógrafa também cometia, entre frasquinhos de substâncias malcheirosas, colas viscosas, fitas adesivas, tesouras e equipamentos esotéricos que algum amigo sempre trazia da Alemanha e que acabavam se revelando instrumentos de tortura. E, enfim, depois dessa bodosíssima odisséia, entregava os originais à editora, que os mandava à gráfica, que fazia a composição em linotipo, que vinha com erros, que eram de novo emendados, que... Enfim, era uma mixórdia infernal, de que o computador nos livrou para sempre.

Livrou, sim, mas com a condição de que usássemos uma máquina cuja manutenção dá mais trabalho do que, como já disse aqui, manter e administrar seis famílias. Revejo esta estimativa agora. Não seis famílias, mas pelo menos umas oito a dez. Em verdade lhes digo, para que o computador funcione cem por cento (cem por cento, não, porque isso é uma utopia, mas uns 80 a 90 por cento, porque sempre há alguma coisinha que requer um acerto nem sempre adiável), é preciso que se dedique a ele pelo menos o dobro do tempo que se dedica ao trabalho propriamente dito. Duvido que o mais fanático dos proprietários ou colecionadores de automóveis tenha mais trabalho do que um pobre usuário de computador.

Quem usa sabe, não tenho o que explicar. Quem não usa não seria capaz de avaliar o que significa trabalhar em regime de permanente suspense, ameaçado por interrupções e anúncios sinistros, além de acusações infundadas, tais como a de que o pobre escrevinhador acaba de cometer uma operação ilegal e o programa será fechado. Isso é o mínimo. O meu mente de forma desavergonhada e alardeia a ocorrência de catástrofes que jamais se materializam e, quando se materializam, só são realmente solucionáveis por uma comissão de técnicos ensandecidos, que falam uma língua incompreensível pelo resto da Humanidade e declaram tudo obsoleto, inadequado ou, para usar uma palavra de que cada vez gostam mais e só é empregada com maior freqüência em relação à vida pública nacional, corrompido. O que você aprendeu ontem não serve mais para hoje e o que você instalou ontem se recusa a comunicar-se, ou sequer coexistir, com o que você teve de instalar hoje. Conheço vários mártires companheiros de sofrimento, como, por exemplo, o equilibradíssimo colega e amigo Zuenir Ventura, que, como eu, alterna momentos em que quer atirar o computador pela janela ou atirar-se ele mesmo pela janela.

Mas eu ia resistindo, pagando o preço da eterna vigilância. Era, de certa forma, um vitorioso. Hoje, porém, não. Ele vinha dando sinais de que a rebelião final chegaria, mas eu não ligava. Afinal, não havia vírus, não havia descuido quanto a nada. Até que chegou o dia em que, sem mais um aviso a não ser de que havia um erro no disco, ele travou de vez e não voltou a dar sinal de vida. Mudei o disco e perdi tudo. É como se uma biblioteca tivesse pegado fogo. Desarvorado, não sei mais o que escrevi, como escrevi ou a quem escrevi. Dirão vocês que se deu bem a literatura brasileira, pois nunca mais haverá um livro de crônicas minhas, talvez livro nenhum. Nem haverá um eu, possivelmente. Sim, porque enquanto arrasto os pés por aí com a cara apalermada, sei que ele ganhou e agora está apagando os meus últimos neurônios. Se, na próxima semana, eu não aparecer, vocês já sabem: fui deletado.


computador homen das cavernas

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