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Ele Conseguiu
João Ubaldo Ribeiro
Quem me vê, aqui no Leblon, passando de bermudas com o ar meio aparvalhado de sempre, as bainhas das bermudas de sempre abaixo dos joelhos, as sandálias de sempre escorregando dos pés e o sorriso alvar de sempre com que respondo aos cumprimentos de desconhecidos, vai jurar que é o mesmo lunático inofensivo que costuma circular nas vizinhanças, indo comprar bolo de aipim na confeitaria ou ao boteco para arrostar as agressões à minha vascainidade temporariamente injuriada (apesar de já estar classificado, mas quem é vascaíno mesmo sabe a que quero referir-me) e certamente não desconfiará de nada. Passará até por perto de mim, sem ter a menor idéia de que, em meu cérebro tresvariado, reside um quase-homicida, a ponto de cometer não só um, mas vários tresloucados gestos. E, de fato, tenho saído muito mais que habitualmente para não começar a tresloucar à mínima provocação da parte dele, cuja convivência já não consigo suportar e cuja visão ameaça levar-me a crises convulsivas.
Sim, talvez algum de vocês já tenha adivinhado. É o computador, esta máquina demoníaca com a qual somos cada vez mais obrigados a conviver e que, na exatíssima descrição de um amigo meu, é dividida em duas partes principais: o hardware e o software. O software é a parte que você xinga e o hardware é a parte que você chuta. Até umas duas semanas atrás, apesar de rudes golpes e embates, eu terminava ganhando, ou pelo menos obtendo razoáveis condições de sobrevivência. Agora, porém, me vejo derrotado, arrasado, devastado e - tenho certeza - observado com desdém sádico e sarcástico por este monitor que sou obrigado a fitar de olhos injetados. Ele finalmente ganhou. Eu não deixava que ele pegasse vírus ou qualquer outra afecção, dedicava a seu caráter solerte e traiçoeiro a mais vigilante das atenções, mas desta vez ele achou um jeito de ganhar, aplicando-me um simples golpe mecânico.
Tento amenizar meu sentimento de revolta e humilhação raciocinando que ele veio para ficar e ou nos habituamos a ele ou nos fossilizamos em questão de semanas. Lembro os tempos heróicos em que, para escrever um livro, eu tinha de catamilhografar minha pobre literatura usando um abominável papel-carbono que produzia uma cópia que eu jamais emendava, mas guardava por questão de segurança, revendo resmas de laudas amarfanhadas, passando a limpo (a sujo, na realidade, porque as emendas a caneta posteriores eram inevitáveis) tudo e encaminhando o resultado a uma datilógrafa profissional, que produzisse originais apresentáveis. Depois, revia os erros que a datilógrafa também cometia, entre frasquinhos de substâncias malcheirosas, colas viscosas, fitas adesivas, tesouras e equipamentos esotéricos que algum amigo sempre trazia da Alemanha e que acabavam se revelando instrumentos de tortura. E, enfim, depois dessa bodosíssima odisséia, entregava os originais à editora, que os mandava à gráfica, que fazia a composição em linotipo, que vinha com erros, que eram de novo emendados, que... Enfim, era uma mixórdia infernal, de que o computador nos livrou para sempre.
Livrou, sim, mas com a condição de que usássemos uma máquina cuja manutenção dá mais trabalho do que, como já disse aqui, manter e administrar seis famílias. Revejo esta estimativa agora. Não seis famílias, mas pelo menos umas oito a dez. Em verdade lhes digo, para que o computador funcione cem por cento (cem por cento, não, porque isso é uma utopia, mas uns 80 a 90 por cento, porque sempre há alguma coisinha que requer um acerto nem sempre adiável), é preciso que se dedique a ele pelo menos o dobro do tempo que se dedica ao trabalho propriamente dito. Duvido que o mais fanático dos proprietários ou colecionadores de automóveis tenha mais trabalho do que um pobre usuário de computador.
Quem usa sabe, não tenho o que explicar. Quem não usa não seria capaz de avaliar o que significa trabalhar em regime de permanente suspense, ameaçado por interrupções e anúncios sinistros, além de acusações infundadas, tais como a de que o pobre escrevinhador acaba de cometer uma operação ilegal e o programa será fechado. Isso é o mínimo. O meu mente de forma desavergonhada e alardeia a ocorrência de catástrofes que jamais se materializam e, quando se materializam, só são realmente solucionáveis por uma comissão de técnicos ensandecidos, que falam uma língua incompreensível pelo resto da Humanidade e declaram tudo obsoleto, inadequado ou, para usar uma palavra de que cada vez gostam mais e só é empregada com maior freqüência em relação à vida pública nacional, corrompido. O que você aprendeu ontem não serve mais para hoje e o que você instalou ontem se recusa a comunicar-se, ou sequer coexistir, com o que você teve de instalar hoje. Conheço vários mártires companheiros de sofrimento, como, por exemplo, o equilibradíssimo colega e amigo Zuenir Ventura, que, como eu, alterna momentos em que quer atirar o computador pela janela ou atirar-se ele mesmo pela janela.
Mas eu ia resistindo, pagando o preço da eterna vigilância. Era, de certa forma, um vitorioso. Hoje, porém, não. Ele vinha dando sinais de que a rebelião final chegaria, mas eu não ligava. Afinal, não havia vírus, não havia descuido quanto a nada. Até que chegou o dia em que, sem mais um aviso a não ser de que havia um erro no disco, ele travou de vez e não voltou a dar sinal de vida. Mudei o disco e perdi tudo. É como se uma biblioteca tivesse pegado fogo. Desarvorado, não sei mais o que escrevi, como escrevi ou a quem escrevi. Dirão vocês que se deu bem a literatura brasileira, pois nunca mais haverá um livro de crônicas minhas, talvez livro nenhum. Nem haverá um eu, possivelmente. Sim, porque enquanto arrasto os pés por aí com a cara apalermada, sei que ele ganhou e agora está apagando os meus últimos neurônios. Se, na próxima semana, eu não aparecer, vocês já sabem: fui deletado.
| "Oh! Bendito o que semeia Livros ... livros à mão cheia ... E manda o povo pensar! O livro caindo n'alma É germe – que faz a palma, É chuva – que faz o mar." Castro Alves "Um livro é um pássaro com mais de cem asas para voar" Ramon Gomez de la Serna
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Atrevida
Estou mais atrevida Mordaz e ferina Estou cheia de vida Sagaz e ladina Já não sou mais a mesma Respiro outros ares Navego outros mares São tantos olhares Convites, sorrisos Eu gosto eu preciso. Pois é... Que ficou impossível não ver Mudei de você Por isso me esqueça Virei a cabeça Nas noites mal dormidas Rezava seu nome Olhava na janela Chorava seu nome Mexia em sua roupa Gemia seu nome Morria de sede Subia as paredes Me amava sozinha Você não me vinha.
Pois é.... Que ficou impossível não ver Mudei de você Já não me inicia Já não me arrepia Estou mais atrevida Tô cheia de vida Você não me provoca Nem quando me toca Agora eu tenho É fome de homem Que seja feliz Estou mais atrevida Tô cheia de vida Você não me provoca Nem quando me toca Agora eu tenho É fome de homem Que seja feliz.
Ivan Lins e Vitor Martins
"Estamos todos na sarjeta, mas alguns de nós olham para as estrelas." Oscar Wilde
Amanheci pra vida
De um sono profundo e sereno, Imersa em sonhos já antes sonhados Revolta em pesadelos agora vividos. Mergulhada numa inércia profunda Vegetando harmonicamente com tudo. Desejando, sonhando, idealizando, sentindo...
Caminhei caminhos estranhos Longos e às vezes conhecidos. Trilhei veredas, prados e calmarias Em que a alma repousa tranqüila. Tirei pedras dessas estradas, Com as mãos de artistas para não deixar pegadas. Arranhei a alma, essa desconhecida Para não deixar que o desejo me vencesse Pro mundo não saber que nas entranhas, Jazia o calor da alma, que mesmo estranha, Sonha sonhos de uma vida Talvez em outros tempos vivida.
E o corpo, que esconde a alma, Estranha a estranha alma que domina o corpo. Sente a sede de um amor conhecido, Esquecido por ela, essa estranha, Que já tem vivido antes Sonhou tanto que se aquietou, Numa aceitação insana, Que faz do corpo uma prisão eterna, Para a alma, Que sendo estranha Reaja ao seu cativeiro. Queria romper fronteiras Invadir espaços, e ganhar o eterno tempo Criar novos rumos. Acreditar em verdades novas, Verdades surgidas das grades que a sufocam. Alçar vôos por entre as grades Buscar o sol que a fresta traz Esquentando a alma, essa estranha Que de tanto se esforçar, prá se esconder Se mostra por inteira.
E agora, alma e corpo, Embora estranhos, Travam batalhas em suas entranhas Que agora despertadas Vão povoar os sonhos da noite que não termina... Os poros reagem exalando um cheiro Do amor sufocado. E pelo quarto, no ar, Sente-se um aroma Agora desconhecido Do corpo e da alma, Que ainda estranha Se afoga em prantos e se lamenta Pelo corpo que a afugente buscando Ser o que sempre queria, O que surgiu na madrugada fria, Trazida pelo despertar dos sonhos.
Agora quase no comando O corpo domina a alma e se entrega E se vê liberta de grades conhecidas, Antigas e presas por raízes profundas. Eleva-se ao estado da plenitude, E atinge a outra alma, essa não estranha, Que esperava por toda eternidade Por aquela que agora conhecida, E aconchega, e traz consigo O amor que atravessou o tempo. Venceu barreiras Navegou pelos mares do infinito, E encontrou abrigo junto à ela...
A alma dessa estranha, que vivia e sonhava, enquanto na agonia esperava. Por esse encontro Que se não se der no agora Terá ainda a ausência do tempo A eternidade infinita pra se encontrar.
E então, essas almas Juntas Irão se completar Até que a eternidade acabe....
Norma Andrade
Em algum momento ela aparece, e não há como fugir. Morar sozinha é ter de matar a própria barata. Esse era um dos pavores de Alessandra Bourdot, uma das entrevistadas do meu livro. Ela narra um de seus encontros com a intrusa: “Apareceu uma barata no banheiro. Eu estava tomando banho, ela entrou, eu saí. Eu estava com xampu na cabeça e, para me acalmar, repetia em pensamento: ‘É um besouro, é um besouro’. Fechei a porta, entupi o banheiro de veneno e ela ficou lá até o dia seguinte porque meu vizinho, que me ajuda nessas horas, não estava. No dia seguinte, ele foi remover o ‘cadáver’. Mas ela passou a noite inteira ali, me assombrando. Foi horrível!”, diz. Eu também tenho medo. É o único bicho que mato, por razões óbvias. O assunto é nojentinho, mas tem motivo para virar post: descobri, há pouco tempo, que a melhor coisa para matar barata não é chinelo nem veneno. É spray de secar esmalte de unhas! Mais eficiente porque paralisa a intrusa. Evita quela correria para debaixo da mesa, da cadeira. E você, tem pavor de barata? Tem pena? Como enfrenta La Cucaracha?
Rosane Queiroz
Não sei quem sou, que alma tenho. Quando falo com sinceridade não sei com que sinceridade falo. Sou variamente outro do que um eu que não sei se existe (se é esses outros)... Sinto crenças que não tenho. Enlevam-me ânsias que repudio. A minha perpétua atenção sobre mim perpetuamente me ponta traições de alma a um carácter que talvez eu não tenha, nem ela julga que eu tenho. Sinto-me múltiplo. Sou como um quarto com inúmeros espelhos fantásticos que torcem para reflexões falsas uma única anterior realidade que não está em nenhuma e está em todas. Como o panteísta se sente árvore (?) e até a flor, eu sinto-me vários seres. Sinto-me viver vidas alheias, em mim, incompletamente, como se o meu ser participasse de todos os homens, incompletamente de cada (?), por uma suma de não-eus sintetizados num eu postiço."
Fernando Pessoa
Desculpa...
By Ana Carolina
Te olho nos olhos e você reclama... Que te olho muito profundamente.
Desculpa, Tudo que vivi foi muito
profundamente... Eu te ensinei quem sou... E você foi me tirando... Os espaços entre os abraços, Guarda-me apenas uma fresta.
Eu que sempre fui livre, Não importava o que os outros dissessem.
Até onde posso ir para te resgatar?
Reclama de mim, como se houvesse possibilidade... De me inventar de novo.
Desculpa... Desculpa se te olho profundamente,
rente à pele... A ponto de ver seus ancestrais... Nos seus traços.
A ponto de ver a estrada... Onde ficam seus passos.
Eu não vou separar minhas vitórias Dos meus fracassos!
Eu não vou renunciar a mim;
Nenhuma parte, nenhum pedaço do meu ser Vibrante, errante, sujo, livre, quente.
Eu quero estar vivo e permanecer Te olhando profundamente.
Conversa entre pai e filho, por volta do ano de 2031 sobre como as mulheres dominaram o mundo.-Foi assim que tudo aconteceu, meu filho...Elas planejaram o negócio discretamente, para que não notássemos Primeiro elas pediram igualdade entre os sexos. Os homens, bobos, nem deram muita bola para isso na ocasião. Parecia brincadeira.Pouco a pouco, elas conquistaram cargos estratégicos: Diretoras de Orçamento, Empresárias, Chefes de Gabinete, Gerentes disso ou daquilo.-E aí, papai?-Ah, os homens foram muito ingênuos. Enquanto elas conversavam ao telefone durante horas a fio, eles pensavam que o assunto fosse telenovela. Triste engano. De fato, era a rebelião se expandindo nos inocentes intervalos comerciais. "Oi querida!", por exemplo, era a senha que identificava as líderes. "Celulite", eram as células que formavam a organização. Quando queriam se referir aos maridos, diziam "O regime".-E vocês? Não perceberam nada?-Ficávamos jogando futebol no clube, despreocupados. E o que é pior: Continuávamos a ajudá-las quando pediam. Carregar malas no aeroporto, consertar torneiras, abrir potes de azeitona, ceder a vez nos naufrágios. Essas coisas de homem.-Aí, veio o golpe mundial?!?-Sim o golpe. O estopim foi o episódio Hillary-Mônica. Uma farsa. Tudo armado para desmoralizar o homem mais poderoso do mundo. Pegaram-no pelo ponto fraco, coitado. Já lhe contei, né? A esposa e a amante, que na TV posavam de rivais eram, no fundo, cúmplices de uma trama diabólica. Pobre Presidente...-Como era mesmo o nome dele? -William, acho. Tinha um apelido, mas esqueci... Desculpe, filho, já faz tanto tempo...-Tudo bem, papai. Não tem importância. Continue...-Naquela manhã a Casa Branca apareceu pintada de cor-de-rosa. Era o sinal que as mulheres do mundo inteiro aguardavam. A rebelião tinha sido vitoriosa! Então elas assumiram o poder em todo o planeta. Aquela torre do relógio em Londres chamava-se Big-Ben, e não Big-Betty, como agora... Só os homens disputavam a Copa do Mundo, sabia? Dia de desfile de moda não era feriado. Essa Secretária Geral da ONU era uma simples cantora. Depois trocou o nome de Madonna para Mandona...-Pai, conta mais...-Bem filho... O resto você já sabe.Instituíram o Robô "Troca-Pneu" como equipamento obrigatório de todos os carros...A Lei do Já-Prá-Casa, proibindo os homens de tomar cerveja depois do trabalho...E, é claro, a famigerada semana da TPM, uma vez por mês...-TPM???-Sim, TPM... A Temporada Provável de Mísseis... E quando elas ficam irritadíssimas e o mundo corre perigo de confronto nuclear...-Sinto um frio na barriga só de pensar, pai...-Sssshhh! Escutei barulho de carro chegando. Disfarça e continua picando essas batatas...Luis Fernando Verissímo
Quem sou eu?? Quando não temos nada de prático nos atazanando a vida, a preocupação passa a ser existencial. Pouco importa de onde viemos e para onde vamos, mas quem somos é crucial descobrir.
A gente é o que a gente gosta. A gente é nossa comida preferida, os filmes que a gente curte, os amigos que escolhemos, as roupas que a gente veste, a estação do ano preferida, nosso esporte, as cidades que nos encantam. Você não está fazendo nada agora? Eu idem. Vamos listar quem a gente é: você daí e eu daqui.
Eu sou outono, disparado. E ligeiramente primavera. Estações transitórias.
Sou Woody Allen. Sou Lenny Kravitz. Sou Marilia Gabriela. Sou Nelson Motta. Sou Nick Hornby. Sou Ivan Lessa. Sou Saramago.
Sou pães, queijos e vinhos, os três alimentos que eu levaria para uma ilha deserta, mas não sou ilha deserta: sou metrópole.
Sou bala azedinha. Sou coca-cola. Sou salada caprese. Sou camarão à baiana. Sou filé com fritas. Sou morango com sorvete de creme. Sou linguado com molho de limão. Sou cachorro-quente só com mostarda e queijo ralado. Do churrasco, sou o pão com alho.
Sou livros. Discos. Dicionários. Sou guias de viagem. Revistas. Sou mapas. Sou Internet. Já fui muito tevê, hoje só um pouco GNT. Rádio. Rock. Lounge. Cinema. Cinema. Cinema. Teatro.
Sou azul. Sou colorada. Sou cabelo liso. Sou jeans. Sou balaio de saldos. Sou ventilador de teto. Sou avião. Sou jeep. Sou bicicleta. Sou à pé.
Você está fazendo sua lista? Tô esperando.
Sou tapetes e panos. Sou abajur. Sou banho tinindo. Hidratantes. Não sou musculação, mas finjo que sou três vezes por semana. Sou mar. Não sou areia. Sou Londres. Rio. Porto Alegre.
Sou mais cama que mesa, mais dia que noite, mais flor que fruta, mais salgado que doce, mais música que silêncio, mais pizza que banquete, mais champanhe que caipirinha. Sou esmalte fraquinho. Sou cara lavada. Sou Gisele. Sou delírio. Sou eu mesma.
Agora é sua vez.
"Falo a língua dos loucos, porque não conheço a mórbida coerência dos lúcidos" Fernando Veríssimo
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