Adélia Prado
Que mundo ordenado e bom!
Namorar quem?
Minha alma nasceu desposada
com um marido invisível."
Adélia Prado
EU... Eu, eu mesmo... Eu, cheia de todos os cansaços, Quantos o mundo pode dar. — Eu... Afinal tudo, porque tudo é eu, E até as estrelas, ao que parece, Me saíram da algibeira para deslumbrar crianças... Que crianças não sei... Eu... Imperfeita? Incógnita? Divina? Não sei... Eu... Tive um passado? Sem dúvida... Tenho um presente? Sem dúvida... Terei um futuro? Sem dúvida... A vida que pare de aqui a pouco... Mas eu, eu... Eu sou eu, Eu fico eu, Eu... (Fernando Pessoa)
"Erótica é a alma" (Adélia Prado)
Eros é uma das “Divindades Primordiais”, aquelas que pertencem à “pré-história” da Mitologia grega. Segundo o pensamento órfico (de Orfeu, figura mítica que deu origem a uma doutrina filosófica e religiosa), Eros teria nascido do Ovo primordial (o Caos), engendrado pela Noite, cujas metades se separaram, dando origem à Terra e ao Céu. Ele é o princípio da atração universal, que leva as coisas a se juntarem, criando a vida. Eros é a força que assegura a coesão interna do Cosmos e a continuidade da vida na terra. Para Platão, ele seria um dáimon, uma força espiritual intermediária entre a divindade e a humanidade. Na cultura romana, Eros é confundido com Cupido, filho de Vênus (a deusa do amor) e de Marte (o deus da guerra), representado como uma criança alada, nua, armada com arco e flechas ou com espada e escudo, símbolo da paixão arrebatadora. Acontece que, com o passar do tempo, se desfigurou o sentido etimológico da palavra “erótico”, reduzindo o conceito a um tipo de satisfação carnal proibida (“sexo sem pecado é como ovo sem sal”, diria o cineasta Luís Buñuel), à nudez, à sacanagem, aos filmes pornôs. Confundiu-se Eros com Priapo, o deus do sexo, representado com um falo enorme, protetor dos reprodutores e símbolo da procriação.
O Eros verdadeiro é o deus do amor no seu sentido integral, que engloba corpo e alma. A atração puramente física é animalesca e não humana. É apenas o bicho que tem o período do cio. O homem e a mulher se amam (ou deveriam se amar!) sempre e em todos os lugares por uma comunhão de sentimentos que transcende o aspecto corporal. O erotismo, que verdadeiramente funciona e que faz perdurar a atração recíproca por longo tempo, está no olhar apaixonado, na admiração que o amante sente pelas qualidades físicas e espirituais que consegue enxergar na pessoa amada. O erotismo, que realmente e de uma forma mais duradoura estimula o desejo, se encontra na poesia lírica, na pintura, na dança, nos filmes sentimentais, na arte em geral, pois supera o nível do real e penetra no mundo da fantasia, do sonho, do vago sentimento do inacessível. Por esse prisma, os Cantos de Salomão e a poesia trovadoresca são mais eróticos do que o Kama Sutra. O erotismo está mais no sugerir do que no mostrar totalmente, no claro-escuro, na promessa do idílio, no mistério a ser desvendado, na repetição do ato do amor como se fosse sempre pela primeira vez. Como diz a poeta Adélia Prado, “erótica é a alma”! Só que conhecer o espírito de alguém é bem mais difícil do que lhe conhecer o corpo. Manuel Bandeira nos oferece uma reflexão interessante a respeito:
“Deixa o teu corpo entender-se com
outro corpo.
Porque corpos se entendem; as almas, nem sempre”.
E, sobre a renovação do desejo erótico, esta bela imagem do poeta Mário Quintana: “amar é mudar a alma de casa”. Enfim o erotismo, entendido como prática do amor num sentido bem geral, é onipresente a qualquer atividade humana bem sucedida. A escritora Lygia Fagundes Telles afirma acertadamente: “Vocação é ter a felicidade de ter como ofício a paixão”. Mas é a escritora existencialista francesa, Simone de Beauvoir, companheira do grande poeta-filósofo Jean-Paul Sartre, quem melhor define a essência da relação carnal: “O erotismo implica uma reivindicação do instante contra o tempo, do indivíduo contra a sociedade”.
Salvatore D'Onofrio
Problematizando o prazer e a dor a partir da Psicanálise
Somente pelo conhecimento da dimensão histórica do homem é que se poderão questionar tabus, preconceitos, crendices e interditos que fortemente se acumularam em torno da sexualidade.
(Juçara Cabral)
RESUMO: Freud expõe (1908), através de suas pesquisas, que existe uma relação entre a Moral Sexual e as Doenças da Modernidade, demonstrando suas hipóteses, sob a ótica psicanalítica, a partir de uma revisão minuciosa e singular de uma publicação de Von Ehrenfels (1907) que assinalou a moral sexual como natural (inata) e a civilizada construída sobre os moldes da cultura).
Ao se apossar desse debate, Freud fará um recorte sobre alguns dos fatores que induzem o ser humano a buscar incessantemente formas compensatórias de satisfação pessoal, especialmente, no âmbito da sexualidade, devido às exigências do progresso e desenvolvimento da civilização promoverem um “desequilíbrio” no indivíduo.
Reconhece que a sexualidade é fonte de distúrbios psíquicos, causados pelo controle exacerbado e intransigente dos ditames das leis e normas de conduta, precipitados especialmente sobre a ordem sexual do sujeito. O texto propõe uma panorâmica acerca do que podemos chamar de história do sadomasoquismo, que nos permitirá entender o mecanismo psíquico mobilizador da busca do prazer pela dor. Na idade média, esta associação inusitada é percebida como busca de salvação. Na modernidade, é vista como um desvio. Na contemporaneidade, um ato libertino. Afinal, como a Psicanálise compreende esse comportamento?
PALAVRAS-CHAVE: cultura, sexualidade, ética.
O que significa sadomasoquismo? Quais os prováveis fatores que conduzem o ser humano a tornar-se sádico e/ou masoquista? Como Freud entabula o debate em torno da moralidade e da sexualidade, em particular em seu formato psíquico que o sadomasoquista lhe confere?
O estudo será conduzido através do isolamento conceitual da rede semântica que lhe é relativa no texto de Sigmund Freud, Moral Sexual ‘Civilizada’ e Doença Nervosa Moderna.
Os sociólogos convergem para uma análise da constituição das sociedades, tendo como base a idéia de transformação. Ela parece ser a pedra de toque da Antigüidade e da Idade Moderna. Tal transformação, na passagem de um período para outro, causou um grande desequilíbrio em todos os aspectos: sociais, políticos e econômicos. Uma das instituições mais representativas desse período é a Igreja. Ela transmitiu normas de conduta à posteridade, estando presentes, ainda hoje, em muitas culturas.
No cenário dos séculos IV e V d.C., o que se pensava a respeito do corpo, já era suficiente para responsabilizá-lo por todo mal que existia na “face da terra”, ou seja, que poderia vir a desestruturar os valores “éticos e morais” da civilização. Agostinho, um dos grandes pensadores de sua época, após converter-se à fé cristã, iniciou uma busca pela resposta de algo que o incomodava muito “Por que o mal?”. Segundo Juçara Cabral, “[...] ele encontra respostas nas leituras neoplatônicas: ‘o mal é a privação do ser, é limite, é carência (...) o conhecimento de Deus somente pode ser atingido pela purificação que liberta de tudo o que pertence ao mundo sensível” . Com isso, é expedida a ‘doutrina moral pessimista agostiniana’, que tem como objetivo principal impugnar o mal (sexo, prazer e conforto material). “Disso resulta a culpa que sempre expressou, por ter experimentado o prazer decorrente do ato sexual” .
Agostinho foi o pensador mais influente para o estabelecimento da moral cristã no mundo ocidental. Havia uma busca pelo equilíbrio e moderação na escolha dos prazeres sensíveis e espirituais, em que a primazia estava em atingir o estado supremo da felicidade, devendo, assim, o homem ter o rigor de caráter que o colocasse em uma posição de total indiferença em face da dor e da infelicidade.
A base filosófica da sua era foi precedida pelo pensamento grego, na qual o corpo e a alma eram distintos. O corpo, sendo o ‘templo do pecado, lugar de perdição’ sempre fora inferior à alma – única via de salvação, eterna, indestrutível e imortal. A ‘vestimenta’ chamada de corpo deveria, portanto, ser controlada. Constata-se esse elemento no Fédon de Platão, por exemplo.
Muitos especialistas nos revelam que a Antigüidade tem atitudes de controle para com a realidade corporal. Esse rigor é invariável na história? Somos hoje mais liberados que os antigos? O que nos diz Freud a esse propósito? O discurso freudiano é aqui manejado a partir de sua visão da moral sexual civilizada. Quais as conseqüências psíquicas sofridas por homens e mulheres quando sua necessidade de expressão sexual é reprimida (coibida, represada) pelos fatores de ordem cultural: religião, família, política, economia e educação? Freud explica esse drama da contenção do desejo individual para o arranjo no equilíbrio da civilização?
A moral requer do indivíduo uma obediência às normas (mandamentos e proibições) explicitamente estabelecidas pela sua cultura. De acordo com Dorch, “O princípio da moralidade corresponde à lei de Kant – entre os sistemas funcionais da personalidade (superego, ego, id). O superego trabalha pelo princípio da moralidade. [...] é o sistema de normas legais introjetadas, que exige do ego cumprimento incondicional e procura alcançar uma aproximação maior possível do ego, do ego ideal. Em oposição ao superego, o ego trabalha pelo princípio da realidade e, o id pelo princípio do prazer.
Na compreensão do autor, o ‘ego’ e o ‘id’ são submissos ao ‘superego’. Este afeta diretamente toda a ordem psíquica, que estrutura e comanda o funcionamento normal do corpo, podendo causar um desequilíbrio interno e também externo. Então, a saúde e a eficiência do ser humano estão sujeitas a sofrerem danos, graças às exigências sociais e econômicas impostas pela civilização. Cada vez mais se torna absolutamente indispensável, na luta pela sobrevivência, sustentar esse ‘estado de guerra’ que é a expansão do progresso tecnológico.
O confronto entre o desejo e o sentimento de dever, que são forças éticas e estéticas que construímos psiquicamente, é responsável pelo aparecimento de conflitos psíquicos que, “[...] inflamam os espíritos, exigindo violentos esforços da mente e roubando tempo à recreação, ao sono e ao lazer”. O cultivo e exaltação da individualidade, fidelidade a si próprio, falta de tempo, instrumentalização do sexo, disputas internas pelo poder, descartabilidade e consumismo, são fatores que viabilizam o aparecimento das neuroses – altamente nocivas à vida sexual do indivíduo. Esses indicativos da letra freudiana apontam para a realidade patológica como derivada da ‘proteção’ que o individuo é incitado a promover em favor da virtude?
A supressão e sublimação dos instintos sexuais, a abstinência, a libido represada, o erotismo, a infidelidade, as impressões infantis, as atividades auto-eróticas (masturbação) na primeira infância, a precocidade sexual, a escravidão ao hedonismo e a própria liberdade sexual desmedida podem vir a causar uma anomalia psíquica (irregularidade, anormalidade), alterando o comportamento sexual de homens e mulheres na busca pelo prazer. Expressos sem controle, tais comportamentos serão identificados como pervertidos, seus agentes como indivíduos desmoralizados, depravados. Nessa categoria, além dos homossexuais, encontram-se os sadomasoquistas.
Novaes apresenta uma citação de ‘Totem e Tabu’ na qual Freud diz: “Não vemos, efetivamente, que necessidade haveria de se proibir o que ninguém deseja realizar. Aquilo que se acha severamente proibido tem que ser objeto de desejo”. Ao que Novaes comenta: “Se o objeto total a que aspira a pulsão é interditado, abre-se a possibilidade, exclusivamente humana, de criar seus objetos e diversificar seu gozo”.
O sexo é uma necessidade psico-biológica no homem. Uma maneira de perpetuar a espécie, não somente pela procriação propriamente dita, mas, também, pela manutenção de uma vida saudável (mental e fisicamente), que infere na sobrevivência e lhe garante o bem-estar psíquico.
Se considerarmos o sadomasoquista nessa perspectiva, o veremos como um pervertido, que através de atitudes agressivas, investidas contra outrem ou ele próprio, satisfaz o seu id e o seu ego, medindo forças contra o superego e, dessa forma, atinge o ponto culminante do prazer. Um modo de funcionar específico lhes caracteriza: a busca incessante pela obtenção de prazer, mesmo que este sentimento de satisfação, de deleite, tenha significados relativos ao sofrimento.
“Por que, pergunta Bullough, as preocupações com o sadismo e o masoquismo crescem tanto em importância na imaginação sexual moderna, tanto profissional quanto popular? Em maior ou menor grau, responde ele, isso ocorreu em virtude da profunda doutrinação cultural provocada pelo cristianismo, com sua celebração da agonia na cruz e seu sonho de redenção por intermédio do sofrimento de Cristo. Assim, as disposições e inclinações sexuais podem estar culturalmente arraigadas sem ser biologicamente universais” .
Sem pretender estabelecer um vínculo causal, cumpriria o sadomasoquismo um papel construído pela cultura, especialmente influenciado pelo cristianismo, ao conceber e estimular um certo sofrimento como modo de chegar ao paraíso? Ou trata-se de uma manifestação patológica das expressões sexuais?
“Havelock Ellis foi além e sustentou que o sadomasoquismo não se baseava necessariamente na crueldade, mas podia, em vez disso, ser motivado pelo amor: ‘O masoquista deseja experimentar dor, mas deseja, em geral, que seja infligida por amor; o sádico deseja infligir dor, mas, em alguns casos, se não na maioria, deseja que isso seja sentido com amor”.
Segundo Masters, Johnson e Kolodny, especialistas no estudo da sexualidade contemporânea, “As formas de sadismo percorrem toda a escala, desde jogo ‘gentil’, cuidadosamente controlado com um parceiro voluntário, até comportamento agressivo, que pode incluir tortura, estupro ou mesmo prazer no assassinato”.
Afinal, qual a relação entre o sadomasoquismo e a moral sexual moderna? A partir da análise de alguns dados dos textos utilizados para a construção desse trabalho, emergem vários fatores que transformam os comportamentos humanos, estando em evidência os econômicos, os políticos, os sociais, os éticos, os morais e os culturais, que, indiscutivelmente, promovem um antagonismo entre a civilização e a vida instintual do indivíduo.
“Para Freud, o ser humano é dotado de um sistema invisível que designou de inconsciente. Este é fruto do conflito de forças psíquicas encontradas no interior do psiquismo e também o resultado da luta entre o Eu e os impulsos de natureza inconsciente. Funciona como se o Eu permitisse a manifestação de alguma vontade, desde que esta vontade se mostrasse disfarçada. O disfarce são os sintomas, os sonhos e os lapsos.
O sadomasoquismo é um modo de expressão dos desejos reprimidos no inconsciente do ser humano, devido às altas exigências da vida moderna civilizada. Poder-se-ia pensar que cada indivíduo tem sua liberdade de escolha, quando se trata da busca pela felicidade, pelo prazer, mesmo que seja através da dor?
Rosangela Dórea Santana
Este, que um deus cruel arremessou à vida,
Marcando-o com o sinal da sua maldição,
- Este desabrochou como a erva má, nascida
Apenas para aos pés ser calcada no chão.
De motejo em motejo arrasta a alma ferida…
Sem constância no amor, dentro do coração
Sente, crespa, crescer a selva retorcida
Dos pensamentos maus, filhos da solidão.
Longos dias sem sol! noites de eterno luto!
Alma cega, perdida à toa no caminho!
Roto casco de nau, desprezado no mar!
E, árvore, acabará sem nunca dar um fruto;
E, homem, há-de morrer como viveu: sozinho!
Sem ar! sem luz! sem Deus! sem fé! sem pão! sem lar!
Olavo Bilac
Caminhando pela noite de nossa cidade
Acendendo a esperança e apagando a escuridão
Vamos, caminhando pelas ruas de nossa cidade
Viver derramando a juventude pelos corações
Tenha fé no nosso povo que ele resiste
Tenha fé no nosso povo que ele insiste
E acordar novo, forte, alegre, cheio de paixão
Vamos, caminhando de mãos dadas com a alma nova
Viver semeando a liberdade em cada coração
Tenha fé no nosso povo que ele acorda
Tenha fé no nosso povo que ele assusta
Caminhando e vivendo com a alma aberta
Aquecidos pelo sol que vem depois do temporal
Vamos, companheiros pelas ruas de nossa cidade
Cantar semeando um sonho que vai ter de ser real
Caminhemos pela noite com a esperança
Caminhemos pela noite com a juventude.
Milton Nascimento